sábado, 12 de maio de 2012

Minha cidade natal



Minha cidade natal era cinzenta, porque viveu muito tempo da exploração de minas de carvão. Estava a viver um tempo difícil pois as suas fábricas estavam a fechar. Fábricas de armamento, de bicicletas, enfim. A minha cidade também estava cheia de imigração. Portugueses, Espanhóis, Italianos, Argelinos, Marroquinos, Turcos e até Chineses já existam lá, naquela altura!

Durante vários anos, minha vida se confinou a uma rua, um prédio antigo, mas tranquilo. Pessoas idosas e pessoas que, nessa altura, me pareciam idosas mas que deveriam ter, aquela que é a minha idade hoje, mais ou menos 40 anos.

Tinha duas tias, da parte do meu pai, que eram uma grande ajuda para a minha mãe. Elas ficavam connosco algumas vezes. Mas ficamos, mesmo assim, muitas horas em casa sozinhos, os dois quando a minha mãe ia trabalhar.
Certa vez, minha irmã cortou-se, minha mãe estava no trabalho. Seguiram-se instantes de pânico, de espera. Minha irmã vociferava repetindo uma frase conhecida da altura por ser repetidamente proferida por um grande político francês. Mais tarde rimo-nos disso mas na altura, nem por isso. Minha mãe acabou por chegar e tomar conta da situação. Foi, por um lado, um alívio mas essa responsabilidade era excessiva e provocava em mim muita tensão.

Eu tinha pesadelos frequentemente. Ouvia gritos, por vezes, nem sabia se faziam parte dos sonhos ou não. Num dos sonhos frequentes, eu tentava desesperadamente tapar-me mas não conseguia porque a manta desintegrava-se…
Eu fugia de casa pela janela de trás que dava para um pátio e ia falar com os empregados das pequenas fábricas que ficavam à volta. Com uma tábua e um tijolo, um deles construiu-me um baloiço.

Os fim-de-semana eram como o resto da semana só que com menos gente ainda. Tudo estava fechado. Os franceses abalavam para as suas casas de campo… Felizmente, a nossa tia nos convidava para comer arroz doce! Que alegria poder raspar o tacho com a colher de pau. Minha tia só fazia era repetir a palavra “coitadinhos!”. Minha mãe chorava algumas vezes mas estava sempre triste. Triste de estar longe do seu país, da sua família, do sol, mas sobretudo longe de ser amada como gostaria de ser pelo homem da sua vida, que ela amava mesmo e mesmo assim, como ela era. Poucos homens poderão perceber o que uma mulher sente e como ela ama.

Minha mãe era muito querida connosco. Só tinha um defeito, era muito negativa, acho que fiquei com essa doença por causa dela. Mas que grande mãe nós tivemos. Faz-me lembrar o Roberto Benigni que em “A vida é bela” finge para o seu filho que a perseguição aos judeus era um jogo para que ele não sofresse. Minha mãe fazia de qualquer coisa que fizéssemos algo fantástico! O problema era que, por vezes, a realidade não dava espaço para disfarces. Estava aí bem patente, gritante, horrível, violente, crua e nua.

Havia do outro lado da rua um prédio de gente fina, francesa, com carros de luxo. A Senhora que tratava da manutenção do prédio era imigrante espanhola. Era muito alegre, um espectáculo. Tinha uma pronúncia engraçada. Um coração enorme. Era casada e tinha dois filhos. Brincávamos com os seus filhos na relva, também ela fina como os donos desse mundo. Nossos amigos moravam todos na mesma peça que fazia de cozinha, quarto e sala de Jantar. Como é possível que um espaço tão exíguo fosse tão agradável. Como é possível que as suas batatas fritas demasiado gordurosas fossem tão saborosas ao ponto que, ainda hoje, tenho saudades delas mas tenho de reconhecer que tenho ainda mais saudades deles. Eles diziam que tinham uma grande vivenda em Espanha. Tinham um carro novo na garagem, um Peujeot verde azeitona. Mas sempre os conheci andando á pé. Ele já era corcunda de tanto olhar para o chão ao tentar encontrar moedas ou objectos de valor. Ele gabava-se de ter encontrado muita coisa. Acho que também era tímido e era a sua maneira de conseguir caminhar na rua sem ter de enfrentar o olhar dos outros. Meus pais não eram assim. Meu pai não queria voltar para Portugal. Vivíamos como os franceses. Até falávamos entre nós em Francês. Só os meus pais é que falavam entre eles em Português. Os Espanhóis eram os únicos de quem meus pais tinham pena, mas eu não concordava, porque eles eram felizes como eram, e nós não.

Um primo do meu pai e a sua esposa pegavam em nós algumas vezes e íamos passear de carro, ouvindo música; Pink Floyd, Dire Straits, Supertramp e Génesis…era muito bom! Eles ouviam minha mãe e acalmavam-na. Por vezes, tentavam chamar o meu pai á razão, mas era tudo em vão.

Todos achavam o meu pai uma excelente pessoa mas em casa nós convivíamos com outra pessoa. Acho que posso dizer hoje, sem mágoa, que para mim, ele era um monstro, porque só os monstros metem medo ás crianças, e eu tinha muito medo dele. O dia dividia-se em dois períodos; O período do sofrimento, quando ele estava em casa, e o período da espera…Cada vez que alguém passavam na rua, cada vez que alguém batia à porta, cada vez que a noite começava sem ele, a espera se tornava amarga e instável. Será que ele vinha nervoso ou muito querido. Será que ele iria gritar, bater (na minha mãe, pois ele nunca nos bateu) ou iria dar-nos lições de moral, sem escrúpulos, explicando o que era a vida e como ser uma boa pessoa.

Meu pai tinha vergonha de mim. Eu era muito sensível. Quase demasiado efeminado para o seu gosto. A televisão francesa estava repleta de música, arte, livros, escritores e conversas elaboradas. Eu via e absorvia isso tudo. O mundo do meu pai era o mundo da guerra, das “obras” da construção civil, das mulheres e das bebedeiras.

Um dia fui comprar pão e a Senhora que me atendeu, perguntou-me: “O que deseja a menina?”, fiquei irritadíssimo comigo! Parecia-me que o que Pai tinha razão! Fiquei farto dos meus caracóis, da minha beleza demasiado feminina e sensível.

Felizmente jogava futebol, isso agradava e acalmava as hostes. Mas eu não gostava de ver futebol na televisão, isso irritava o meu pai que me queria explicar à força como é que se jogava. Eu preferia jogar. Era uma das raras ocasiões de viver ao ar livre. Longe dos prédios, longe da tristeza da minha mãe, longe da pena que minhas tias e vizinhos sentiam por mim. Cheguei a ir jogar pelo meu clube e nem saber qual tinha sido o resultado final desse jogo! Chegava a casa, meu pai perguntava-me qual tinha sido o resultado e eu não sabia responder…e lá começavam os insultos…as irritações…os palavrões.

Eu achava que afinal, se a minha família era assim tão infeliz, era por causa de mim. Eu era o principal culpado. Se, pelo menos, eu conseguisse ser diferente!...

Hoje percebo que, se calhar, minha cidade não era tão triste assim, a minha vida lá é que era, com certeza que o era.

Certo dia mudamos de bairro, foi tremendo!

sábado, 5 de maio de 2012

Introdução

Ele tinha mais 10 anos do que ela, era vivido, boémio e solteiro. Sempre fora rebelde. Foi a Guerra. Emigrou para a França. Veio a Portugal ao casamento do irmão, fico apaixonado por uma rapariga singela, filha única por ter perdido o irmão, depois de lhe pedir certa vez para ir buscar um figo á figueira, que tinha uma pernadas por cima do tanque, ele foi e caiu e…
Eles casaram. Foram viver para a França.
Ele estava zangado com Portugal que o obrigou a lutar contra gente boa de Angola. Ele foi, mas não lutou, não matou ninguém mas viu muitos amigos morrerem.
Ela nunca foi realmente perdoada pelos seus pais pois tinha “matado” o seu irmão mais velho.
O resultado foi um casamento atribulado. Ele foi um marido e pai ausente, boémio, nervoso, alcoólico e violento.
Ela foi uma vítima que tinha de dar conta da casa, dos filhos e das finanças.
Ele tornou-se patrão dele mesmo e falhou. Começou a beber mais, bater mais na mulher que sofreu ainda mais. Tentou pôr fim aos seus dias mas foi salva por sua filha.
Um dia, ela perguntou ao filho mais velho: “Por mim fico, mas tu, o que achas, ficamos ou fugimos para Portugal?”. Sua resposta transformou as suas vidas, a sua vida.