sábado, 24 de novembro de 2012



Chegamos a casa da minha Avó. A missão foi cumprida. Estávamos salvos. Nossa Avó tinha preparado aquela que foi a minha primeira refeição nesta nova fase da minha vida. Nunca irei esquecer esta magnífica costeleta de porco frita com batatas fritas e um Sumol de laranja! Até hoje e apesar de ter comido e bebido tantas coisas bem mais refinadas que essas, o sabor deste repasto nunca sairá da minha mente.
Instalamo-nos. O apartamento tinha dois quartos, nós éramos cinco. Tudo estava arrumadinho e limpinho até a nossa chegada. Os meus avós já vivam há muitos anos sós. Nós trouxemos barulho, confusão e despesa. Eu mais do que a minha irmã e a minha mãe. Eu tinha quinze anos, estava cheio de força, de revolta, estava intranquilo e angustiado. Como iríamos fazer para sobreviver? Teria eu de começar a trabalhar? Iria a minha mãe aguentar a pressão desta nova situação?
Minha irmã sempre fora tranquila, bem-comportada, fazias seus deveres, praticava dança clássica. Era linda, loira e fina. Meu pai chamava-a de bebé. Lembro-me de certa vez em França, ter passado pela nossa cidade um enorme boneco (O King Kong, mais precisamente). Ele pegava nas criança nas suas mão a partir do chão e as enfiava na sua boca e elas desciam por dentro do mesmo até voltarem ao solo. Quando a minha irmã viu aquilo, ficou traumatizada ao ponto de não dormir durante meses. Minha mãe andava alarmada, “corria atrás” dos especialista a fim de descobrir como devolver-lhe noites tranquilas. Eu, às escondidas, punha-me atrás de um cabide, que tínhamos no quarto com cara de urso, e assustava-a gritando-lhe que eu era o King-Kong…


Recebemos a ajuda preciosa da madrinha de casamento da minha mãe e do seu marido, que eram professores, para entrar na escola. Estávamos na primavera, quase no fim do ano escolar. Mas importava, mesmo assim, ingressarmos no sistema para nos aculturar e verificar em que ano escolar, nos iriam colocar. Minha irmã foi para o Ciclo e eu tive de fazer um exame Ad-Hoc para verificarem se os meus conhecimentos de Português eram suficientes para que eu pudesse ingressar na Escola Secundária. Felizmente e graças ao trabalho da minha ex-Professora de Português que era por sinal Alemã, eu demonstrei possuir esses requeridos conhecimentos (ou simplesmente, por influência dos padrinhos da minha mãe, isso me foi abonado, nunca saberei).
Chegou então o meu primeiro dia de escola na Secundária! Foi a loucura total…

sábado, 17 de novembro de 2012

Mais uma noite daquelas...violência psicológica e física, choro e insultos voltaram a acontecer. Mas desta vez, foi diferente. Eu levantei a voz e fiz um ultimato. Avisei o meu pai que, ou ela mudava ou ele iria nos perder a todos! Ele fica espantado e ameaçou de novo pois não acreditava que eu, sendo um rapaz “falhado” a olhos dele, teria a coragem de lhe fazer frente. Enganou-se. A paciência dos fracos também tem limites. O medo dá lugar a ousadia. Por vezes dá lugar mesmo a loucura e eu para lá caminhava. Pensamentos horríveis ocupavam meu mundo interior. Tinha pressa de ir embora porque amava o meu pai, não lhe queria fazer mal algum mas também não podia arriscar a vida da minha mãe. Mais tarde, a minha mãe começou a contactar os primos do meu pai e todos juntos, organizaram uma estratégia de fuga. Fugimos pela cave. Um dos nossos primos estava lá a nossa espera com o seu carro. Dormimos na casa de outro primo. No dia a seguir, mudamos de cidade para a casa de outro familiar e dormimos lá outra noite. Já tínhamos viagem marcada, de autocarro, a partir daí. As horas não passavam, tínhamos medo de ser encontrados. Meus primos estavam tensos. Minha mãe em pânico. Eu tomei, interiormente, o papel de salvador. Não que isso me tivesse sido pedido ou que isso tivesse sido reconhecido em mim por alguém. Mas lá estava eu, a tentar mostrar que estava calmo. Não chorava, não comentava, apenas aguentava tudo lá dentro de mim. A viagem de autocarro foi divertida. As pessoas, no geral, voltavam para os seus familiares. As saudades eram muitos mas a proximidade do reencontro instalava entre eles um ambiente de êxtase, expectativa e animação quase constante. Uns contavam anedotas, outros cantavam, outros jogavam às cartas, outros contavam histórias sobre a família, a guerra, a ditadura, o fim da mesma e sobre o futuro de Portugal como país Europeu. Eu estava conquistado, contagiado e motivado. Mas nenhuma dessas pessoas iria lá ficar. Era muito cedo. Muito verde. Ainda não tinham ganho o suficiente. Nós então voltávamos sem nada. Ouvia de vez em quando chamarem-nos de “coitadinhos” mas eu tinha pena era da minha mãe. Ela estava a dar a cara sozinha com dois filhos e voltava sem marido, algo que, naquela altura era inaceitável fosse qual fosse a razão dessa mesma separação. Chegamos a Capital do Algarve. Era linda. Tanta luz. Palmeiras, a Ria Formosa, os barcos, as pessoas andando à pressa de um lado para o outro. Tinham passado vinte e dois anos desde o fim da ditadura e isso sentia-se nas ruas. As pessoas se sentiam livres, alegres e motivadas para viver sem limites. O meu avô nos veio “buscar”, sim “buscar” porque nós éramos três e ele vinha de motorizada. Daquelas motorizadas que eu achava estranhas, pois pareciam motas mas andavam devagar, e se o meu avô andava devagar! Mas o pior ainda era o som delas. Algumas delas, como a V5 por exemplo, estavam especialmente preparadas para pôr à prova os ouvidos de qualquer santo. Eu fui de mota com o meu avô. A minha mãe e a minha irmã foram de autocarro. Durante todo o caminho eu delirava com o que via. Imagine-se o que era poder viver todo ano no local onde, normalmente, apenas se podia viver no máximo um mês de férias. Era um pouco como ganhar a “sorte grande”. Tudo era exótico para mim. Estava iniciada minha lua-de-mel. Brevemente iria voltar a pousar os pés na terra e perceber o que realmente passaria a ser a minha vida neste meu novo espaço ao qual eu iria passar a chamar “casa”.

sábado, 3 de novembro de 2012

O futebol foi, em minha vida, algo tão útil como estranho. Um pouco à imagem de Tom Hanks em Forrest Gump, eu jogava titular, até cheguei a ser capitão de equipa numa época em que começamos as primeiras jornadas no último lugar mas acabamos no primeiro. Até fomos coroados com um artigo num jornal local e um patrocínio de uma marca de lâminas de barbear! Mas eu não estava lá. Não estava no mesmo filme, o filme que os meus colegas estavam a rodar. Daí, talvez, ter sido escolhido como capitão. Eu não sentia aquilo, por isso não me enervava, não discutia. Como é possível, não sei, mas sei que aconteceu. Eu vivia duas realidades ao mesmo tempo, o jogo e a situação na qual eu me encontrava. Como se, nesse momento, eu tivesse hipótese de estar sozinho comigo mesmo. Um espécie de tempo a sós com Deus mas sem Deus.
Fui ganhando destaque até que, para meu infortúnio, meu pai ouviu falar das minhas prestações desportivas, pelos seus amigos, no café, e quis passar a ser o meu mentor! A partir daí foi o sufoco; discussões com os meus treinadores, com os árbitros, com os meus colegas de equipa, com os pais dos meus colegas e comigo…Cada domingo de jogo era uma aventura que poderia terminar numa grande cena de pancadaria envolvendo, no meio do campo de futebol, todas as pessoas citadas há pouco. O futebol foi, como é óbvio, perdendo seu brilho. Virei-me cada vez mais para a vida de rua, cada vez mais triste, cada vez mais revoltado contra tudo e contra todos. Tornei-me distante, "gozão", zombador, amargo e carente de um sentido para a vida que estava a ter tanta dificuldade em viver. A melhor recordação futebolista dessa época foi um torneio de fim de ano desportivo, no sul de França. Ficamos lá uma semana hospedados na casa de pessoas envolvidas na vida do clube que organizava essa competição. Foi engraçado perceber que havia vidas bem diferentes das nossas. Essas pessoas tinham pronúncias estranhas, e hábitos bem invulgares. A senhora que me recebeu, logo pela manhã, Iniciou o pequeno-almoço com pão mergulhado em vinho numa prato de sopa, eu fiquei sem apetite, só de olhar para aquele ritual! Não faço ideia de qual foi a nossa prestação nesse torneio mas sei que essa cultura, a cultura mediterrânica, me causou um profundo impacto. Falavam alto, riam-se bastante, conviviam. Parecia-me um filme, daqueles filmes de Bourvil, a preto e branco, que eu via desde pequenino. Quem sabe, cheirou-me a algo que, apesar de eu não conseguir entender nessa altura, representava a minha futura paixão por aquele que é para mim o cantinho do mundo mais maravilhoso da face da Terra, meu Sotavento, meu Algarve, meu querido Portugal.