sábado, 27 de outubro de 2012

Por vezes ainda eu me lembrava do director da minha escola primária. Foi talvez o primeiro grande Homem com quem tive o privilégio de me relacionar. Era alto, forte, usava a barba grande, tinha uma voz forte. Mas não era nenhum destes pormenores que me fazia ter saudades dele. Nosso relacionamento não começou da melhor forma. Certo dia, ele perguntou-me se tinha estudado, eu respondi que sim mesmo sabendo perfeitamente que a resposta verdadeira era não. Ele fez-me uma pergunta sobre a matéria. Eu respondi que não me lembrava da resposta. Ele ficou tranquilo e afirmou com uma serenidade irónica que eu podia ir para o pátio do recreio correr em volta do mesmo, até que me lembrasse da resposta e nesse momento poderia voltar. Escusado será dizer que até ao intervalo da manhã corri, frustrado comigo próprio, por não ter estudado e nem sequer ter tido coragem de dizer a verdade. Certo dia, fomos desafiados a protestar em favor do magnífico jardim que tínhamos na escola. A Câmara Municipal queria destruí-lo. Meu professor achou que isso seria um atentado. Ele lutou até ao fim contra a decisão de eliminar este pulmão de ar puro, cheio de árvores, plantas e animais que faziam a nossa delícia. Nós, que éramos crianças de cidade, tínhamos ali, diariamente, a oportunidade de nos relacionar com a natureza. Esse combate foi ganho por meu professor e eu percebi a mensagem por trás deste acontecimento. Por vezes nossas convicções nos levam a perder a popularidade. Ele tinha fama de ser duro, eu via nele um homem bom e tornei-me seu discípulo incondicional. Ele também era sensível, mesmo que não o demonstrasse. Ele já vinha a observar-me havia algum tempo. Deve ter percebido minha tristeza, deve ter percebido, por morar perto da minha casa, que eu encontrava-me sempre por ali. Um dia ele fez-me um desafio, ir com ele e a sua família passar um fim-de-semana para uma casa que ele tinha na montanha. Foi realmente uma proposta que, só por ela, me deixava extasiado. Meus pais deixaram-me ir. Foi lindo. As paisagens, os passeios, os convívios e as conversas. Conversávamos como se fôssemos dois homens. De tal forma, eu encarnei esse papel, que me apaixonei pela sua filha que deveria ter uns vinte e tal anos… Ela foi simpática e não levou a mal, ela bem via que o meu olhar estava cheio de “paixão” mas não atropelou os meus sentimentos, ria-se, e eu percebi tranquilamente que o facto de eu só ter uma dezena de anos tornava este amor impossível. O fim deste ano lectivo representou o fim de um ciclo em que eu tive o privilégio de ser educado por professores que passaram pelo Maio de 68 em França. Eles tinham sonhos e convicções. Eram simples mas convictos e exigentes. Eles acreditavam na sua missão e viviam-na com um empenho contagiante. Eu prometi ao meu Director, no fim do ano que iria ser um homem de verdade, um aluno empenhado, um filho exemplar… aqui fica a minha homenagem ao Professor Fayard.

sábado, 20 de outubro de 2012

Felizmente, eu não cheguei a ser todo enrolado. O meu professor de matemática, que tinha sido um grande atleta, tanto pelos seus resultados como pela sua grande estrutura, chegou no exacto momento para me salvar deste calvário inglório. Foi um momento muito especial. Percebi que nem sempre a bravura nos conduz a bom porto e que os heróis podem muito facilmente acabar mortos... Voltei para casa, para o meu monótono combate pela sobrevivência...Há muita coisa que não vale a pena contar porque poderia parecer mentira ou exagero e enfim... Um dia encontrei a minha mãe a dormir. Ainda hoje, não percebo se acreditei mesmo que ela estivesse a dormir. Felizmente a minha irmã não encarou a situação da mesma forma e pediu ajuda. Comprovou-se que a minha mãe tinha tentado pôr fim a sua vida nessa tarde. Foi o fim do romantismo, na minha vida. Percebi que as coisas podem sempre se agravar. Que não havia limites para a decadência humana. Que o ser humano realmente pode estragar a sua vida se assim o entender tanto como a vida que de si está dependente, isto fez toda a diferença! Mais tarde, quando a minha mãe já restabelecida me afirmou que, por ela, ficava com o meu pai mas se eu achasse que era melhor fugirmos, ela iria aceitar e voltaríamos para Portugal. Não hesitei em responder que se eu ficasse, poderia acontecer mais tragédia. Já tinha 15 anos, o corpo e a mente preparados para a luta, pelas minhas circunstâncias, pelo futebol, pelo bairro e pelo contexto escolar em que eu me movia. Fizemos uma experiência. Fomos passar férias, no Natal, na "nossa" cidade (cidade dos meus pais). Achei tudo fantástico. A luz do dia. O aspecto bronzeado das raparigas. A descontracção das pessoas. O facto de ninguém achar que eu era escuro demais. Ver a minha mãe feliz mesmo que muito infeliz. O carinho de um povo “inferior” que me fazia sentir “superior”. É claro que essa é sempre a sensação do turista que vai para um país que passa por situações mais complicadas que o seu, mas enfim, foi o que eu vivi.
Voltamos para França cheios de saudades da nossa cidade cinzenta mas com a firme convicção que bastaria só mais um momento de desrespeito para tomarmos mais uma daquelas decisões que alteram drasticamente o nosso quotidiano!

sábado, 13 de outubro de 2012

Houve uma grande decisão tomada por meus pais que mudou radicalmente a minha vida. Passei a estudar numa escola secundária que ficava muito longe de casa porque era a única que oferecia o Português, como segunda língua. Os meus pais falavam sempre em francês connosco para não prejudicar nossa integração na sociedade francesa mas não queriam que perdêssemos a sua cultura de vez. Não pensavam regressar definitivamente para Portugal. Meu pai trabalhava por conta própria. Tínhamos uma vida desafogada financeiramente. Num só ano meus pais chegaram a comprar um apartamento, uma carrinha nova e um barco! Além disso, o meu pai não perdoava sua pátria de o ter mandado para a guerra, por isso, era bastante improvável que regressássemos a este país que era para mim pouco mais do que o sítio onde vivia uma parte da minha família e o lugar de lazer onde nós podíamos desfrutar da praia e do sol. Eu tinha de apanhar três autocarros para chegar a minha escola. Era a parte mais interessante do dia. Via muitas pessoas. Apreciava muitas raparigas bonitas. Desenvolvi minha arte de palhacinho para atrair as atenções das pessoas à minha volta e alegrar o meu dia na esperança de esquecer, por momentos a dura realidade de regressar à casa e voltar a ter medo, medo de ver meus pais discutindo, medo de encontrar minha mãe surrada, desanimada ou inanimada... Minha escola secundária era bem sui generis. Consistia num grande conjunto de edifícios plantados perto de um bairro social. Esse bairro era principalmente ocupado por pessoas de origem árabe. Esses passaram a ser minha segunda dor de cabeça depois dos meus pais. Todos os dias alguém nos pedia algo, nos ameaçava, nos tentava agredir. O meu desafio diário passou a ser sobreviver. Eu tinha medo mas não demonstrava, enfrentava-os, queria provar que era um português durão, diferente da maioria e que não iria dobrar-me perante as ameaças deles e aguentei...tanto que um dia, alguém não aguentou, por mim e por nós e atuou, reuniu provas, testemunhas, falou com o director, com advogados e avançou. Lembro-me de certo dia ter descoberto quem me tinha roubado a minha linda e nova camisola, recém oferecida por minha mãe. Fui ter com o rapaz e ameacei espancá-lo e ele devolveu-me a camisola. Foi muito bom gabar-me durante o dia e tecer teses sobre como deveríamos tratar esse tipo de pessoas. O problema foi ao sair da escola. Vi um grupo de mais ou menos oito a dez pessoas reunidas à porta mas nunca pensei que fosse um comité de boas-vindas. Mandaram um jovem insultar-me, percebi que o objectivo era que eu começasse a escaramuça para que pudessem reivindicar legítima defesa. Eu bem vi o arame farpado, no chão, que era utilizado para uma tortura bem conhecida na zona. As pessoas eram enroladas com esse arame, deitadas no chão e empurradas de forma a rebolarem até ficarem completamente ensanguentadas. Bastava-me ignorá-lo e seguir o meu caminho para evitar mais complicações, mas devido ao meu tal código de honra, eu tive de avançar, porque um dos diversos insultos que me foi dirigido fazia referência a minha mãe. Dirigi-me ao rapaz, levantei a minha mão para lhe bater e… Não tardou nada, eu estava a ser enrolado…